Lua Guerreiro tem 24 anos e uma vasta cabeleira que cultiva desde 2015, quando iniciou a transição de gênero. O cabelo foi, como diz, "um marco" no processo, junto com o nome social. No último domingo, rasparam-lhe nacos de cabelo no Hospital Azevedo Lima, de Niterói, depois de ela ter sido golpeada na cabeça por um grupo de homens na rua a caminho de casa. Em seguida, o nome social de que tanto se orgulha foi desprezado pelos policiais que a atenderam na delegacia quando tentava prestar queixa da violência de que fora vítima. As autoridades, conta, recusaram-se a chamar Lua pelo nome que escolheu, usando o que consta em seu documento de identidade.
— São dois marcos da minha transição: o cabelo e o nome. E tudo isso foi desrespeitado. Ainda não quis olhar o quanto rasparam, não sei se quero ver. Saí do hospital e fui para a polícia e, lá, o nome que eu uso foi ignorado, mesmo eu dizendo que era meu direito. Foi uma experiência terrível — diz ao GLOBO Lua, que, por fim, desistiu de registrar a queixa na 76ª Delegacia da Polícia Civil de Niterói.
Na tarde desta terça-feira, acompanhada de testemunhas e de uma advogada que viu seu relato na internet, a roteirista e produtora de cinema foi à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, na Lapa, para finalmente registrar a ocorrência. Ela relatou ter sido agredida após pedir um isqueiro a um vendedor de uma barraca na boêmia praça Cantareira, no bairro de São Domingos. Eram mais de 23h, e as agressões verbais, segundo Lua, terminaram em ataques físicos.
— Para ser sincera, não sei quanto tempo fiquei apanhando, não sei quantos homens eram. Eles se revezavam para me bater. Eu levantava, eles me davam rasteira por trás, e eu caía de novo. Fiquei desorientada, não tenho noção de como tudo aconteceu. Tinha sangue da cabeça aos pés.
Na ambulância rumo ao Hospital Azevedo Lima, a amiga que a acompanhava registrou em vídeo o primeiro desabafo da roteirista. Logo depois, já na emergência, Lua conta ter sido alvo de deboche pelos enfermeiros que a receberam.
— Faziam piadas sobre mim, me tratavam pelo outro gênero e acabaram até discutindo com minha amiga que criticou a falta de profissionalismo (da equipe de enfermagem). Eu levei pontos na cabeça porque bati a cabeça várias vezes, e não me fizeram um raio-x. Não sei se isso é normal, sabe? — questiona Lua.
Em seguida, ao chegar à delegacia, ela diz que deu de cara com o rapaz que havia iniciado as agressões, acompanhado de outros dois homens e de uma mulher. Reconheceu de pronto um dos agressores. Não sabe dizer quem eram os demais ("Não consegui ver o rosto deles enquanto apanhava", diz). Sentindo-se intimidada, ainda assim, deu início a seu relato para os policiais.
— O tratamento já vinha sendo desagradável, meus agressores estavam lá sorrindo, à vontade. Mas tudo piorou quando o policial pegou meu RG e viu que meu nome no documento era outro. Aí ele ficou transtornado. Eu expliquei que era meu direito usar o nome social e que os documentos oficiais devem trazer o nome de registro com o nome social ao lado, mas ele se recusava a ouvir — diz Lua. — Depois disso, me colocaram numa espera incessante. Os policiais ficavam passando, e eu ali toda machucada, dolorida.
Eram mais de 2h de domingo para segunda, e, conta Lua, os policiais assistiam à televisão ("Ironicamente, viam um programa sobre violência de gênero", diz). Ela teria questionado o motivo da espera e relata ter ouvido como resposta a frase: "Estamos ocupados".
— Eu disse a eles: 'Estou cansada, estou com dor'. E me falaram que a previsão de atendimento era de mais duas horas. Então desisti. Depois ouvi dizer que é uma tática muito comum usada pelos policiais para desencorajar o registro da queixa. Parece que eles costumam fazer isso para desestimular a denúncia mesmo — afirma.
Secretaria promete apurar caso
Sobre as acusações de transfobia que a roteirista teria sofrido no Hospital Azevedo Lima, a Secretaria de Estado de Saúde informou, em comunicado, que "repudia qualquer tipo de intolerância nas suas unidades e que a nova gestão tem como uma de suas principais metas a humanização durante o atendimento". "A SES informa que irá apurar com rigor a denúncia e agir de forma exemplar com todos os funcionários envolvidos", diz a nota enviada ao GLOBO.
A 76ª Delegacia de Polícia de Niterói não comentou as acusações de transfobia e informou apenas que "os agentes de plantão solicitaram a vítima que aguardasse atendimento, uma vez que todos os policiais estavam realizando outros registros naquele momento. No entanto, ela optou por ir embora informando que retornaria depois para registrar o fato".
A assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância registrou a ocorrência nesta terça-feira e que a vítima foi encaminhada para exame de corpo de delito. Acrescentou: "Testemunhas também foram ouvidas e diligências estão sendo realizadas em busca de imagens de câmeras de segurança e informações que levem a autoria do fato. As investigações estão em andamento".
A Comissão de Direitos Humanos, da Criança e do Adolescente da Câmara Municipal de Niterói informou que vem oferevendo à Lua "apoio jurídico para a devida identificação e responsabilização dos autores desse ato covarde de barbárie". Presidente da comissão, o vereador Renatinho do PSOL lembrou que "o Brasil é o país onde mais trans morrem assassinadas no mundo", referindo-se a dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), segundo os quais 163 pessoas trans foram assassinadas no país em 2018.
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