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Aos 73, Maria da Penha comenta sobre machismo, política e João de Deus

A bioquímica ficou de cadeira de rodas após ser agredida pelo marido e marcou a história na valorização da mulher brasileira

24/12/2018 às 09h00
Por: Jéssyca Seixas Fonte: Em Tempo
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O medo, a dor e o trauma vividos pela bioquímica Maria Penha Fernandes Maia, de 73 anos – o que a deixou dependente de uma cadeira de rodas, após ter sido atingida com um tiro nas costas pelo ex- companheiro, Marco Aurélio, enquanto dormia – não tirou sua coragem de lutar por justiça e orientar milhares de mulheres vítimas de maus-tratos a buscarem seus direitos e a denunciarem os casos de violência doméstica.

Maria da Penha conta com exclusividade ao  jornal suas lutas para a implantação da lei 11.340/2006, que leva o seu nome e que deu origem ao Instituto Maria da Penha, fundado em 2009, em Fortaleza, para orientar vítimas de agressão.

Ela também comenta o caso do médium João de Deus, acusado de estupro por suas pacientes, fala sobre o “machismo” e sobre a proteção e o amparo da lei às vítimas.

- A senhora foi a primeira mulher no país a denunciar maus-tratos de um homem, caso responsável pela criação da Lei Maria da Penha. Como isso aconteceu?

Maria da Penha - Nós, agora, há mais de 12 anos, temos uma lei que resultou da minha luta por justiça e essa lei leva o meu nome, justamente, porque, com essa minha luta, conseguimos denunciar em instância internacional o Brasil, devido à omissão do judiciário nos casos de agressão contra as mulheres. Através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), esse processo foi iniciado com a ajuda de duas ONGs muito importantes: o Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Claden).

Depois de dois julgamentos do meu agressor – onde ele foi condenado e saiu do fórum em liberdade por recursos – ,escrevi todas as contradições do réu no meu primeiro livro, “Sobrevivi... posso contar”. Após isso, as ONGs tomaram conhecimento, me ligaram e perguntaram se eu queria denunciar o Brasil, porque ali tinham provas evidentes da negligência do judiciário do Brasil em relação a esse tipo de agressores. Na hora em que me colocaram essa possibilidade numa instância internacional, concordei, e nós assinamos essa petição. Juntamente com as duas organizações internacionais, em 1998, e durante quatro anos, nenhuma resposta foi dada.

A OEA fez um relatório solicitando que o processo fosse finalizado, o agressor fosse punido, que a legislação fosse mudada dentro dos processos de violência contra a mulher. Pediram também que os casos fossem julgados com celeridade. A minha lei é considerada uma das três melhores do mundo pela Organização das Nações Unidas (ONU).

- O que mudou da Lei Maria da Penha para cá? A senhora acha que contribui para mudar o “ machismo” brasileiro que acha que a mulher é sua propriedade?

M.P. - Pela vergonha, pela cultura machista. Porque, se a mulher foi assassinada ou agredida, é porque ela era culpada. Eu enfrentei isso. O processo do meu caso demonstrou isso. Eu mostrei todas as contradições do meu agressor dentro do processo. Acredito até que se tem observado, atualmente, é que as mulheres estão se encorajando a denunciar. E isso é uma consequência dessas recomendações da OEA. A gente está vendo não só no relacionamento marido e mulher, abusos sexuais, mas em outras situações, como no Caso João de Deus.

- Como a senhora vem acompanhando o caso do médium João de Deus, que é denunciado por dezenas de mulheres de ter se aproveitado de sua fragilidade (afinal, estavam doentes) para abusá-las sexualmente?

M.P. - Acho que as mulheres que iniciaram essa denúncia foram muito corajosas, e é assim que toda mulher deve se comportar. No caso do João de Deus, elas não sofreram a violência doméstica, mas elas se encorajaram e denunciaram os casos, porque o que ele (João de Deus) fez é crime. Espero que ele responda pelo que fez, porque, agora, quando essas vítimas têm a possibilidade de denunciar, elas denunciam.

Essas mulheres têm que denunciar para que os homens que se comportam assim sejam punidos. Isso é muito grave. Se não houvesse a Lei Maria da Penha, essas mulheres não estariam denunciando hoje esses casos. A mulher se encorajou em todos os sentidos para não sofrer mais violência de homens, e esses agressores precisam entender que não podem cometer esses crimes hediondos, pois existe uma punição, e a lei ampara as vítimas.

- Isso mudou também o comportamento da mulher que antes se recusava a denunciar seu agressor com medo de mais violência?

M.P. - Sim. Não existia nenhuma proteção para essas mulheres. A Lei 11.340/ 2006 ganhou visibilidade. E, com a mudança de legislação, a mulher pode e tem a estrutura para denunciar e a estrutura para ser protegida. Não é só denunciar. A mulher tem a condição de denunciar e de ser orientada através do Centro de Referência da Mulher. Lá, ela sabe qual a conduta mais segura para ser tomada.

Com a equipe do Centro de Referência da Mulher, essa vítima é orientada e destinada a ir para uma Casa Abrigo, onde ela passa a ser protegida. É um local sigiloso. Existe também a Delegacia da Mulher, onde a mulher passa a conhecer a aplicabilidade da lei. Há também o juizado da mulher, que faz com ela tenha proteção e seu agressor possa ser punido.

- Quais os principais impedimentos das vítimas em denunciar seus companheiros?

M.P. - Um dos principais impedimentos é quando na cidade dessa mulher não existem políticas públicas que amparem a mulher. Quando isso não acontece a responsabilidade é do gestor dessa cidade. Por exemplo, se não há um Centro de Referência, a mulher continua sem ter conhecimento da importância da lei na vida dela. Há ao menos oito anos da criação da lei, as capitais criaram as políticas públicas. Mas essas políticas públicas deixam a desejar quando, por exemplo, não existe o funcionamento de uma delegacia da mulher 24 horas por dia, todos os dias. Muitas delegacias fecham às sextas-feiras e voltam às segundas-feiras. E isso é uma falha, porque o quando o agressor ingere bebida alcoólica e, geralmente, isso é no final de semana, as vítimas correm ainda mais o risco de serem agredidas.

Em cidades pequenas, há poucas políticas públicas. É necessário que todas as prefeituras brasileiras implantem o Centro de Referência da mulher, porque é um local onde a mulher vai ser atendida por um assistente social, psicólogo e advogado. Profissionais conversam com ela para sair daquela situação. Se ela se sente ameaçada em denunciar por correr algum tipo de risco por parte do agressor, ela pode ir para uma casa abrigo em outro lugar, outras cidades próximas. A mulher que não tem proteção em seu município pode ligar para o Disk Denúncia, no número 180, onde ela será informada sobre os seus direitos.

- Os juízes da Vara Maria da Penha, no Amazonas, reclamam que algumas mulheres agredidas denunciam o marido agressor, mas, logo em seguida, depois que eles se arrependem, elas retiram a ação. Isso não é uma forma de imunidade e uma porta para permitir mais violência no futuro?

M.P. - Esse arrependimento é comum em todos os casos e a mulher acaba tendo a esperança de que aquelas agressões não vão mais acontecer, mas se elas já viveram situações em que o seu agressor prometeu não mais agredir e essa agressão voltou a acontecer, acho que o poder judiciário deva continuar o processo, embora ela queira retomar o relacionamento. É necessário que a justiça seja feita. Porque, se o camarada cometeu um crime e a mulher perdoa, ele pode, num certo momento, chegar numa agressão mais séria e a mulher seja assassinada.

 - A senhora é fundadora do Instituto Maria da Penha. Gostaria que a senhora falasse um pouco do trabalho desenvolvido pelo Instituto.

M.P. - Nós trabalhamos com pesquisa, temos trabalhado informações sobre a lei e atividades educacionais, a nível universitário, fundamental e médio, que orientam a mulher sobre os casos de violência doméstica. Todas essas informações são encontradas com detalhes no site do Instituto Maria da Penha: www.institutomariadapenha.org.br.

 - Qual a sensação de receber o Prêmio Capitu?

M.P. - Olha, me senti honrada, porque o nome Capitu está relacionado a uma jornalista que trabalhou a página feminina do Estadão e há muitos anos passa informações do interesse da mulher. Foi uma votação pela internet e acabei sendo escolhida.

 - O que a senhora diria para as mulheres que sofrem violência doméstica e que não têm coragem em denunciar seus companheiros, mesmo tenho conhecimento da lei?

M.P. - Eu acho que o medo e a condição financeira pesa para que ela não denuncie. Muitas vezes a mulher não trabalha. Então, essa mulher, independente disso, tem que pensar na possibilidade de ser assassinada. A agressão começa com ordem, exigência e daí surge a violência psicológica, moral e chega um ponto em que primeiro tapa é dado. A partir daí a violência se torna frequente.

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